Somos as sementes dos sonhos de nossos avós
Por Renata Tupinambá
Uma anciã um dia me disse que somos árvores que caminham, carregamos
galhos, raízes e todos aqueles que vieram antes de nós são estrelas em
nosso céu. Em direção ao sol nossa eterna caminhada de pés descalços para não
deixar de sentir a terra, o calor, as águas e cada respiração. Somos natureza
viva.
Os anciões conhecem os ciclos da terra e do céu, a música oculta que se
manifesta em todas as coisas e desperta o que está adormecido, um verdadeiro
maraka'yba de palavras. Estamos sempre indo ao encontro do tamuya, em Tupi
"o avô, mais velho". Qual ancestral fala através de nós ?. Nossa raiz
é o cordão umbilical oxigenando a tekobé "vida". Nasci na lua
minguante ou jaxy inhepytù, como prefere chamar os Guarani. Ela surge sempre
que um ciclo lunar chega ao fim e a energia da terra tende a descer, é o
período que se planta raízes. Todas etnias do tronco tupi-guarani têm uma
maneira própria de ler as estrelas. Fazer a leitura do ybaka"céu"
sempre guiou nossos mais velhos, ajudando na agricultura, decisões, saúde e no
tecer dos caminhos.
Eu entendi que observar na infância minha avó materna, escutar suas
histórias, cantos, conselhos e ver seus exemplos fez a cultura permanecer viva
tomando formas, se adaptando em novos lugares. O saber germina quando na
juventude encontra um solo fértil. Aprender a ver a vida com os olhos da
natureza, é um grande livro de sons, silêncios, sabores, odores, instintos,
aquilo que se aprende observando e vivendo cada dia. Regar essa flor que
podemos chamar de nossa cultura, deixando florescer na forma que vemos o mundo
e a vida é nossa maior riqueza.
Mergulhamos em um rio, a água está sempre em movimento na direção que a
correnteza arrasta tudo em seu fluxo, pedras podem mudar algumas direções.
Podemos sentar próximos de suas margens e observar, seu interior pode ser claro
ou escuro, vemos o que está nele ou não. Mas todo momento ele compartilha um
ensinamento e apenas com os olhos da nossa identidade podemos escutar ou ler
seus sinais.
A memória de um povo é o tecido da sua história, os ancestrais são os
troncos das culturas. O respeito a ancestralidade não é apenas por buscar as
antigas tradições e conhecimentos mas por ser a nossa origem e fonte de força.
Não é possível viver sem olhar o passado que vive através de nós em cada pulsar
cardíaco.
Quando os saberes são compartilhados, é que ouvimos o conselho de
anciões, ensinamentos ancestrais que ecoam nas vozes das gerações, sendo
repassados como uma grande teia que está interligada. Daiara, uma amiga da
etnia Tukano disse que o povo forte é igual uma árvore sagrada e bem antiga,
chamada samaúma e encontrada na região amazônica, suas raízes são enormes. É
uma das que chega mais perto do sol mas como toda planta apenas fica de pé
porque sua raiz é de grande força e tamanho. Fiquei intrigada e resolvi saber
mais sobre. A samaúma traz um ensinamento bem profundo para todos. Já havia
escutado falar da árvore que retira a água das profundezas do solo abastecendo
não apenas ela mas outras espécies, irrigando e protegendo todo o reino vegetal
a sua volta, mas não sabia seu nome. Os povos da região que ela cresce, usam
suas raízes que são chamadas de sapopemba para a comunicação batendo em suas
estruturas.
A conexão de força entre antepassados e seus descendentes é como de uma grande
árvore e suas raízes. Não apenas semelhanças externas ou DNA (ácido
desoxirribonucleico), que carregamos deles mas estamos ligados pela semente da
origem. A resistência cultural indígena nasce do resgate em valorizar e
fortalecer os saberes milenares.O que está no interior de cada membro de uma
família manifesta a essência ancestral de seu tronco, ativada pela transmissão
dos conhecimentos de uma geração para a outra. A base da nossa cultura
originária é o alimento da nossa identidade, a força enquanto povos
originários, aquilo que faz sermos quem somos e a maior luta dos povos
indígenas é pelo direito de ser.
Lembro de uma poeta zapoteca em uma rádio, seu nome Natalia Toledo,
recitando sua obra, La realidad:"Qué es ser indígena? he aquí mi lista:
Tener un idioma para los pájaros para el aire que silva, un idioma para hablar
con la tierra, para platicar con la vida...ser indígena es tener un universo y
no renunciar a él.". A última frase ecoa pela lembrança sonora, sempre se
repetindo várias vezes, "ser indígena es tener un universo y no renunciar
a él.".
Dialogar com o passado, presente e futuro na contemporaneidade é um
desafio, as culturas não são estáticas e permanentes, mas mutáveis no tempo,
tudo se transforma. Não existe um congelamento nas formas de ser ou agir, mas
adaptações nos modos de viver. Com a colonização foi intenso o processo de
miscigenação e influencia de outras culturas, como também o nascimento de novas
formas de ser. Comunidades e seus membros encontraram diferentes estratégias de
resistência perante a opressão.
Nas grandes cidades a presença indígena ficou camuflada, espíritos,
ossos e vozes abafados no cimento das calçadas. O concreto cresceu e ainda
cresce com força em solos sagrados. Filhos e netos, para onde foram, onde estão
? o que muitos não indígenas buscam apenas nas faces ou vestimentas das pessoas
nas ruas, são incapazes de ver nas histórias e o que guardam no coração. A
cidade é um espaço urbano construído dentro de antigas aldeias. Embaixo e em
cima dos concretos vozes desejam ser libertadas.
Pensar na história da humanidade é lembrar que foi imposto aos povos
conquistados língua e cultura daqueles que dominaram seus territórios. Faz
parte do que ocorreu em todos os continentes, penínsulas e oceanos. Batalhas,
guerras e genocídios de gerações que precederam a geração atual, cobriram
e ainda cobrem os solos de sangue, definindo os rumos da existência
humana. Nascemos, morremos, renascemos de cinzas e lágrimas em constantes
ciclos de conquistas e derrotas todos os dias.
Lembro de um trecho de um poema de Nanblá Gakran, conhecido como o
guardião da língua Laklãnõ do Povo Xokleng, de Santa Catarina:"É... não
adianta podar minhas folhas e tentar silenciar a minha história, pois somente
afogará as minhas crenças e, assim, reanimará minha raiz. Não se seca raiz de
quem tem sementes espalhadas pela terra para brotar. Não se apaga dos nossos
avós as ricas memórias; Não se apara largas asas, porque o céu é liberdade e a
fé é encontrar o ‘Ãgglẽnẽ’ um dia.".
Somos povos com diferentes tempos de contato e passando por processos
culturais, sociais e políticos de cada etnia dentro de seus universos. O que
pode parecer confuso ou incompreensível para quem não faz parte de alguma
destas realidades diferenciadas ou cosmologias. Embora estejamos todos ligados
e aquilo que uma realidade faz interfere em outras. As filosofias indígenas
precisam ser valorizadas, no espaço escolar e acadêmico, pois revelam formas de
pensar, línguas e saberes que foram ignorados por aqueles que construíram uma
educação cercada por muros, impedindo homens, mulheres e jovens de olhar o
horizonte
.