sexta-feira, 10 de junho de 2016

Sobre os nossos ancestrais

Somos as sementes dos sonhos de nossos avós

Por Renata Tupinambá

Uma anciã um dia me disse que somos árvores que caminham, carregamos galhos, raízes e  todos aqueles que vieram antes de nós são estrelas em nosso céu. Em direção ao sol nossa eterna caminhada de pés descalços para não deixar de sentir a terra, o calor, as águas e cada respiração. Somos natureza viva.

Os anciões conhecem os ciclos da terra e do céu, a música oculta que se manifesta em todas as coisas e desperta o que está adormecido, um verdadeiro maraka'yba de palavras. Estamos sempre indo ao encontro do tamuya, em Tupi "o avô, mais velho". Qual ancestral fala através de nós ?. Nossa raiz é o cordão umbilical oxigenando a tekobé "vida". Nasci na lua minguante ou jaxy inhepytù, como prefere chamar os Guarani. Ela surge sempre que um ciclo lunar chega ao fim e a energia da terra tende a descer, é o período que se planta raízes. Todas etnias do tronco tupi-guarani têm uma maneira própria de ler as estrelas. Fazer a leitura do ybaka"céu" sempre guiou nossos mais velhos, ajudando na agricultura, decisões, saúde e no tecer dos caminhos.

Eu entendi que observar na infância minha avó materna, escutar suas histórias, cantos, conselhos e ver seus exemplos fez a cultura permanecer viva tomando formas, se adaptando em novos lugares. O saber germina quando na juventude encontra um solo fértil. Aprender a ver a vida com os olhos da natureza, é um grande livro de sons, silêncios, sabores, odores, instintos, aquilo que se aprende observando e vivendo cada dia. Regar essa flor que podemos chamar de nossa cultura, deixando florescer na forma que vemos o mundo e a vida é nossa maior riqueza.

Mergulhamos em um rio, a água está sempre em movimento na direção que a correnteza arrasta tudo em seu fluxo, pedras podem mudar algumas direções. Podemos sentar próximos de suas margens e observar, seu interior pode ser claro ou escuro, vemos o que está nele ou não. Mas todo momento ele compartilha um ensinamento e apenas com os olhos da nossa identidade podemos escutar ou ler seus sinais. 

A memória de um povo é o tecido da sua história, os ancestrais são os troncos das culturas. O respeito a ancestralidade não é apenas por buscar as antigas tradições e conhecimentos mas por ser a nossa origem e fonte de força. Não é possível viver sem olhar o passado que vive através de nós em cada pulsar cardíaco. 

Quando os saberes são compartilhados, é que ouvimos o conselho de anciões, ensinamentos ancestrais que ecoam nas vozes das gerações, sendo repassados como uma grande teia que está interligada. Daiara, uma amiga da etnia Tukano disse que o povo forte é igual uma árvore sagrada e bem antiga, chamada samaúma e encontrada na região amazônica, suas raízes são enormes. É uma das que chega mais perto do sol mas como toda planta apenas fica de pé porque sua raiz é de grande força e tamanho. Fiquei intrigada e resolvi saber mais sobre. A samaúma traz um ensinamento bem profundo para todos. Já havia escutado falar da árvore que retira a água das profundezas do solo abastecendo não apenas ela mas outras espécies, irrigando e protegendo todo o reino vegetal a sua volta, mas não sabia seu nome. Os povos da região que ela cresce, usam suas raízes que são chamadas de sapopemba para a comunicação batendo em suas estruturas. 

A conexão de força entre antepassados e seus descendentes é como de uma grande árvore e suas raízes. Não apenas semelhanças externas ou DNA (ácido desoxirribonucleico), que carregamos deles mas estamos ligados pela semente da origem. A resistência cultural indígena nasce do resgate em valorizar e fortalecer os saberes milenares.O que está no interior de cada membro de uma família manifesta a essência ancestral de seu tronco, ativada pela transmissão dos conhecimentos de uma geração para a outra. A base da nossa cultura originária é o alimento da nossa identidade, a força enquanto povos originários, aquilo que faz sermos quem somos e a maior luta dos povos indígenas é pelo direito de ser.

Lembro de uma poeta zapoteca em uma rádio, seu nome Natalia Toledo, recitando sua obra, La realidad:"Qué es ser indígena? he aquí mi lista: Tener un idioma para los pájaros para el aire que silva, un idioma para hablar con la tierra, para platicar con la vida...ser indígena es tener un universo y no renunciar a él.". A última frase ecoa pela lembrança sonora, sempre se repetindo várias vezes, "ser indígena es tener un universo y no renunciar a él.".

Dialogar com o passado, presente e futuro na contemporaneidade é um desafio, as culturas não são estáticas e permanentes, mas mutáveis no tempo, tudo se transforma. Não existe um congelamento nas formas de ser ou agir, mas adaptações nos modos de viver. Com a colonização foi intenso o processo de miscigenação e influencia de outras culturas, como também o nascimento de novas formas de ser. Comunidades e seus membros encontraram diferentes estratégias de resistência perante a opressão.

Nas grandes cidades a presença indígena ficou camuflada, espíritos, ossos e vozes abafados no cimento das calçadas. O concreto cresceu e ainda cresce com força em solos sagrados. Filhos e netos, para onde foram, onde estão ? o que muitos não indígenas buscam apenas nas faces ou vestimentas das pessoas nas ruas, são incapazes de ver nas histórias e o que guardam no coração. A cidade é um espaço urbano construído dentro de antigas aldeias. Embaixo e em cima dos concretos vozes desejam ser libertadas.

Pensar na história da humanidade é lembrar que foi imposto aos povos conquistados língua e cultura daqueles que dominaram seus territórios. Faz parte do que ocorreu em todos os continentes, penínsulas e oceanos. Batalhas, guerras e genocídios de gerações que precederam a geração atual, cobriram  e ainda cobrem os solos de sangue, definindo os rumos da existência humana. Nascemos, morremos, renascemos de cinzas e lágrimas em constantes ciclos de conquistas e derrotas todos os dias. 

Lembro de um trecho de um poema de Nanblá Gakran, conhecido como o guardião da língua Laklãnõ do Povo Xokleng, de Santa Catarina:"É... não adianta podar minhas folhas e tentar silenciar a minha história, pois somente afogará as minhas crenças e, assim, reanimará minha raiz. Não se seca raiz de quem tem sementes espalhadas pela terra para brotar. Não se apaga dos nossos avós as ricas memórias; Não se apara largas asas, porque o céu é liberdade e a fé é encontrar o ‘Ãgglẽnẽ’ um dia.".  

Somos povos com diferentes tempos de contato e passando por processos culturais, sociais e políticos de cada etnia dentro de seus universos. O que pode parecer confuso ou incompreensível para quem não faz parte de alguma destas realidades diferenciadas ou cosmologias. Embora estejamos todos ligados e aquilo que uma realidade faz interfere em outras. As filosofias indígenas precisam ser valorizadas, no espaço escolar e acadêmico, pois revelam formas de pensar, línguas e saberes que foram ignorados por aqueles que construíram uma educação cercada por muros, impedindo homens, mulheres e jovens de olhar o horizonte
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